"A Raiva", por B.K.
Á medida que praticamos ioga e começamos a meditar, desenvolvemos a equanimidade, desprendendo-nos do ego. Passamos a compreender que muito do que acontece na vida não é pessoal. O motorista não nos fechou porque não tinha respeito por nós. Percebemos que isso nada tem que ver conosco. Quando a mente se torna mais quieta, o primeiro pensamento que nos ocorre não é "idiota", mas "talvez ele esteja correndo ao hospital para ver seu pai que está morrendo". No ocidente, as pessoas levam tudo para o lado pessoal, a ponto de existir a expressão "fúria ao volante" para designar os motoristas que se agridem e até mesmo se matam no trânsito. Em Puna e na maior parte da Índia, ainda não há semáforos, e as ruas são uma aglomeração de motoristas, pedestres e ás vezes animais, todos tentando atravessar, e só por pouco um não bate no outro. Os motoristas buzinam sem parar, para alertar os outros de sua presença e disputar um lugar, mas ninguém encara isso como pessoal. Todos sabem que aquela multidão na rua está tentando ganhar o seu sustento e chegar ao seu destino. Isso não significa que não haja rivalidade no trânsito ou que as pessoas não recorram aos tribunais quando algum acidente acontece. Os indianos não são todos iogues, mas nossa cultura nos ensina que as vezes a vida é impessoal. Estamos todos sujeitos a forças impessoais, como o trânsito.
Muitas pessoas dizem que sou genioso porque grito na aula quando vejo que algum aluno está se arriscando ou, por outro lado, não está se esforçando. Por isso dizem que sou um professor severo. Sou rigoroso, mas não ríspido. Uso minha raiva para libertar meus alunos de seus padrões. Um aluno certa vez não parava de falar no seu medo durante o Sirsasana, então finalmente gritei: "Esqueça o medo. Do chão você não passará. O medo está no futuro. No presente não há medo". Ele se assustou, mas entendeu aonde estava querendo chegar. Um comandante que está liderando o exército no campo de batalha nem sempre pode se dirigir suavemente aos soldados. Ás vezes, ele precisa gritar para motivá-los rapidamente; às vezes precisa falar com brandura para dar-lhes coragem. Abatalha da ioga é com o corpo e o ego, seu pequeno eu, para que sua Alma, seu grande Eu, saia vitoriosa.
Um jovem foi trazido a mim por seus pais. Fazia semanas que ele se encontrava desnorteado, como que em transe. Despachei os pais e perguntei-lhe qual era o problema. Ele me contou que a divina energia kundalini o despertara. A kundalini é uma energia muito rara e sagrada. Era como se ele me dissesse que havia se iluminado. Estapeei seu rosto. Eu sabia que ele estava enganado e, por alguma razão, simplesmente pregando uma peça nos pais. De início ele se sobressaltou, mas prestou atenção. Então lhe mostrei como fazer alguns ássanas que o ajudariam a aterrissar e voltar a si. Não estou sugerindo que os professores devem bater nos alunos, ou que os pais devem bater nos filhos. Quando isso acontece, é geralmente porque o professor ou os pais perderam o controle, e essa raiva é destrutiva. Estou dizendo que há lugar para a raiva justificada - não a raiva autojustificada - que, se habilmente utilizada, mais ajuda que fere as pessoas. Eu não estava zangado com o rapaz. Estava zangado com a sua ilusão. O tapa serviu para acordá-lo dessa fantasia perigosa. Talvez o exemplo mais comum e mais simples seja o da mãe que agarra o filho pequeno quando ele está prestes a atravessar a rua. A raiva da mãe é construtiva, e ela pode ralhar com a criança para ensiná-la a manter-se em lugar seguro. Se a mãe fica ruminando sua raiva e continua a gritar com o filho pelo resto do dia, isso não é construtivo, porque ele pensará que a mãe está com raiva dele e não simplesmente daquilo que ele fez.
Livro: Luz na Vida. B.K.S. Iyengar
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